quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Sentimentos de Culpa Vs. Ignorância

Anónimo disse: "O que é estranho neste texto, para além da obcessão malthusiana, é que ele podia perfeitamente ter sido escrito por Paulo Teixeira Pinto. Estará o Paulo Pedroso por acaso ao serviço de algum maquiavelismo social-darwinista? Esquece que nunca houve na Terra tantos paraísos naturais e ecológicos sob estreitíssima protecção nacional e internacional? Porque omite os progessos realizados nas últimas décadas ao nível da "engenharia climática"? Porque razão me hei-de sentir terrivelmente culpado de existir ao ler aos seus textos?"
(1 de Maio de 2008 02:13)
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Caro Anónimo,
Não sei porque razão acha que este texto poderia ter sido escrito por Paulo Teixeira Pinto. O que não deixa de ser estranho, isso sim, é essa acusação. Porque, ao fazê-la, você só está a redireccionar o incómodo que o meu texto lhe causa para alguém que representa certos grupos , certas classes e certas visões do mundo. No fundo, você continua a apontar o dedo e a ver a realidade metida em lógicas maniqueístas.
Pois olhe, não só não estou ao serviço de nenhum objectivo maquiavelista social-darwinista, e, desculpe que lhe diga, é ridículo pensar nesses termos, como estou, tão só a alertar as pessoas para os riscos que a sociedade moderna corre, como resultado dos excessos que nos temos permitido (excessos de liberdade de acção, que têm conduzido o planeta ao limite, excessos de igualdade económica, que têm levado o consumo a níveis estratosféricos, excessos de reprodução humana, que vão conduzir o planeta a tensões sociais, económicas, políticas, culturais e civilizacionais gravíssimas).
Era melhor ficar descansadinho e não dizer nada, não era? Continuar, como se nada se estivesse a passar. Além do mais, muito do que eu estou a dizer, já foi dito por autores consagrados e investigadores prestigiados.
A questão central deste novo discurso malthusiano não reside na possível falta de alimentos para uma população crescentemente voraz e exigente. Esse também é um problema importantíssimo e vai-nos causar muitas dores de cabeça nas próximas décadas. Mas, se quer saber, o grande problema que teremos de enfrentar e cujas consequências serão gravíssimas, tem a ver com o esgotamento do petróleo convencional.
Aconselho-o vivamente a ler apenas 4 livros:
- Uma verdade inconveniente (Al Gore)
- O Fim do Petróleo (James Howard Kunstler)
- Os Limites do Crescimento (Dennis Meadows)
- Seis Graus ( Mark Lynas)
Presumo que nenhum dos referidos autores partilha os valores e os princípios de Paulo Teixeira Pinto. Meter neste tipo de conversa a referência a esse senhor é apenas mais um sinal de que temos de nos preocupar a sério, tal é a mirabolante lógica que preside ao raciocínio humano dos nossos dias. Formatos há muitos!
Os imensos paraísos naturais e ecológicos só estão sob protecção porque o Homem arrasa tudo o resto. Se não destruíssemos avassaladoramente os ecossistemas deste planeta não teríamos necessidade de criar santuários. Mas, não me diga que você está à espera de garantir os recursos necessários à sobrevivência humana a partir do que restar nesses santuários? Sabe a que ritmo foi desflorestada a Europa? Sabe que área florestal tinha a Europa há tão só 1 século ou mesmo meio século? E sabe que estamos a destruir florestas tropicais a um ritmo assustador, tudo para satisfazer as nossas necessidades alimentares e providenciar matéria-prima para uma série de coisas como mobiliário ou papel?
Não me diga que, quando atingirmos o limite dos limites, acha que tudo irá correr bem porque nunca existiram tantos santuários ecológicos sob protecção?
E ainda refere os grandes progressos, das últimas décadas, ao nível da "engenharia climática". Mas quais progressos? Por acaso o Homem tem a capacidade mínima de controlar o clima mundial? Estamos, isso sim, a desregulá-lo a uma escala sem precedentes. Ainda não ouviu falar do aquecimento global? Entrou por um ouvido e saiu pelo outro? Ainda acha que está por provar que o aquecimento global é, efectivamente, o resultado da actividade humana? Já é consensual, entre a comunidade científica, que o aquecimento global é o resultado da actividade humana sobre este planeta. O clima, tal como o conhecemos, está em risco de colapsar a qualquer momento, podendo ultrapassar-se o limite a partir do qual deixaremos de reconhecer o clima planetário, devido à instabilidade, à desregulação, ao desequilíbrio e à intensidade de certos fenómenos.
Estiquemos um pouco mais a corda e poderemos ser os responsáveis pela interrupção da designada Corrente do Golfo, no Oceano Atlântico. E, se isso suceder (e olhe que já estivemos muito mais longe desse momento), pode dizer adeus ao clima tal como o conhece. Já imaginou a Inglaterra, a França ou a Espanha com Invernos semelhantes aos dos dos Estados Unidos ou do Canadá? Já imaginou a desertificação crescente, a diminuição dos recursos aquíferos, o derretimento das calotes polares, o aumento significativo dos níveis dos oceanos, o desaparecimento dos glaciares que garantem a sobrevivência a centenas e centenas de milhões de pessoas? E ainda o aumento contínuo das emissões de gases com efeitos de estufa, que provocam um aumento das temperaturas globais, intensificando as pressões humanas sobre os ecossistemas já de si frágeis. E o aumento impressionante de catástrofes naturais, como tornados, tempestades e furacões, que nunca tivemos registo de tantas como as observadas nos últimos anos (não só em quantidade mas, sobretudo, em intensidade e potência)? E agora, repare bem, até Portugal já tem os seus tornaditos!!! E os livros científicos que asseguravam que no Atlântico Sul não ocorriam furacões? Pois, parece que, recentemente, os livros tiveram de ser reescritos.
E tudo isto, devemos ignorá-lo, só para que você, assim como todos os outros consumidores-dependentes deste planeta, não se sintam mal. Vamos, então, continuar a ignorar os sinais e as evidências. Vamos continuar a consumir desenfreadamente e irresponsavelmente. Vamos continuar a assobiar para o lado e a enterrar a cabeça na areia, porque dá uma dor de cabeça terrível só por ter de pensar que, afinal de contas, não podemos continuar a esticar a corda. Vamos todos fingir que nada disto se passa e que está tudo bem.
É claro que poupamos uma dor de cabeça hoje. Mas o Homem vai continuar a querer mais e sempre mais. E, quando for visível aos olhos de todos, que somos demasiados para querer tudo o que está à disposição, nessa altura nem um milhão de toneladas de aspirina chegarão para lhe curar as dores de cabeça.
Por isso, deixe-se estar confortavelmente instalado no seu sofá, e faça o mesmo que muitos fizeram a Churchill: tape os ouvidos, para não se sentir mal, para não ser chamado à responsabilidade, para não ter o trabalho de fazer alguma coisa, para ver se continua a dormir, embalado na maravilhosa canção que é a nossa realidade.
Conhecer e compreender os riscos que temos de enfrentar é apenas o primeiro passo que todos temos de dar. Não é para que se sinta culpado. É para que deixe de ignorar a realidade, para que não diga que desconhece as causas dos problemas ou as consequências da actividade e das opções humanas. Porque só saberemos o que fazer se não formos ignorantes. As soluções só podem surgir quando conhecemos os problemas. Se vivermos na ilusão de que tudo está bem, se preferirmos enterrar a cabeça na areia, seremos apanhados pela mudança e não teremos compreendido nada. E, quando dermos o últimos suspiro, ainda estaremos a apontar o dedo a um qualquer Paulo Teixeira Pinto.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

Bill Gates com a síndroma de S. Francisco de Assis

Nesta altura do campeonato, os meus leitores devem estar a assumir atitudes muito diferenciadas. Alguns pensarão que eu estou a dizer que a culpa é das economias emergentes, isto é, que estou a apontar o dedo. Meus caros, não se trata de apontar o dedo! Mais do que saber de quem é a culpa, importa apurar responsabilidades. E, mais do que encontrar bodes expiatórios, importa conhecer as causas e compreender as consequências das acções humanas. E elas são bem mais complexas do que essas respostas simples que você passa a vida a tirar da manga. Também imagino que haja quem nem queira ler, só para não ter de passar pela afronta de ver as suas convicções, os seus valores, a sua lógica e o sentido do seu mundo serem profundamente postos em causa. E também há aqueles que abanam o braço e dizem que o Paulo Pedroso está a delirar e a ver coisas impossíveis de suceder. Há sempre muitos estados de negação: os que dizem que já fazem muito, porque separam e reciclam os seus resíduos, os que dizem que não são os principais responsáveis, os que dizem que ninguém tem o direito de lhe apontar os excessos e as irresponsabilidades, os que dizem que não fizeram nada de mal, os que dizem que desconhecem os efeitos e as consequências das suas acções (do seu comportamento altamente consumista), os que dizem que há demasiados impedimentos, os que estão acomodados e, finalmente, os que se consideram impotentes porque nenhum dos seus actos poderá fazer a diferença.
Você está convencido que existe uma crise no mercado petrolífero? O conceito de crise pressupõe que um, ou vários factores, desequilibram temporariamente um mercado, mercado esse que tenderá novamente a equilibrar-se, assim que terminem os efeitos da crise. Ora, não há maior erro do que seguir as palavras dos jornalistas que nos passam a vida a dizer que há uma crise. Mas qual crise? Metade das reservas petrolíferas (convencionais) foram esgotadas, resta a outra metade, que é geologicamente mais difícil de obter, num contexto em que a procura não pára de aumentar e a oferta dispõe de reservas cada vez menores. E você ainda está convencido que o preço do petróleo está onde está por causa de uma crise? Não, habitue-se, porque as tendências dos últimos anos são estruturais e não conjunturais. Apesar das flutuações conjunturais, das especulações, da instabilidade no Médio Oriente, das constipações de Hugo Chavez ou das indisposições dos ayatolas, o mercado petrolífero vai continuar estruturalmente caracterizado pela existência de uma oferta cada vez mais restrita e de uma procura cada vez mais faminta. Vá deitando contas ao que aí vem, como consequência de uma fonte energética tão importante como o petróleo com preços crescentemente galopantes. E continue distraído, a consumir desvairadamente, continue a exigir mais salários, para si e para os milhões de cidadãos deste planeta, para irem todos a correr fazer compras nos shoppings. E não se esqueça de fazer muito turismo, conduzir sempre acima de 140km/hora nas auto-estradas e continuar a enfiar na cabeça dos seus filhos que os desportos automóveis são uma referência a glorificar, que a lógica da velocidade deve ser aplaudida e que devemos usar os automóveis para “injectar” adrenalina nos nossos corpos sedentos de emoções e de sensações.
Quando o petróleo convencional se esgotar, este planeta poderá sustentar uma população humana com elevados padrões de consumo, entre 10% a 30% dos efectivos humanos actualmente existentes. As possibilidades de alargamento ou estreitamento deste leque dependem, em grande medida, de factores relacionados com a eficiência energética, com a responsabilidade social e ambiental ou ainda com as evoluções tecnológicas. Para mim, cosmopolita inveterado, prefiro um planeta onde se respire tanta liberdade e igualdade quanta diversidade e responsabilidade. Quero e desejo um planeta habitado por muitas culturas, muitos povos, muitas sensibilidades, muitas lógicas de acção. Mas, para que este planeta se torne viável, seria necessário alcançar um equilíbrio entre aquilo que desejamos e aquilo que podemos ter. É possível encontrar soluções que garantam paz, prosperidade, padrões elevados de consumo (qualidade de vida), equilíbrio ambiental e diversidade cultural. Basta que tenhamos noção das consequências dos impactos que produzimos, noção de que não devemos ultrapassar certos limites, noção de que temos deveres para connosco, para as gerações futuras e para a diversidade ecológica, no fundo, noção de responsabilidade. É óbvio que podemos e devemos defender valores como a liberdade, a igualdade e a fraternidade. É óbvio que temos direito a uma existência digna, a crescer cultural, intelectual e materialmente. Mas, em nome da nossa própria sobrevivência, não podemos nem devemos fazê-lo para além de certos limites. E isso pode ter de nos levar a questionar alguns dos nossos valores. Pode ter de levar-nos a discutir questões éticas muito controversas, como, por exemplo, a questão de saber se cada casal pode decidir o número de filhos que quer ter. E não, não é que eu goste desta ideia. Eu, como você, também fui formatado para considerar esta ideia aberrante. No entanto, será esta uma ideia aberrante aos olhos das próximas gerações?
Já ouviu falar, certamente, no designado ciclo vicioso do subdesenvolvimento. Este ciclo explica-se, de um modo muito simples: os factores, as condições e as características de subdesenvolvimento de um país acabam, muitas vezes, por promover mais e mais subdesenvolvimento, condicionando fortemente as opções económicas de um país. Gostaria que você já se tivesse apercebido de que existe também um ciclo vicioso para o desenvolvimento. As populações dos países desenvolvidos são extremamente exigentes quanto aos seus direitos, seguem padrões de consumo bastante elevados, possuem classes médias massivas. À escala mundial, é relativamente irrelevante o impacto de 10 milhões de portugueses. Mas o impacto de 300 milhões de norte-americanos já é bastante significativo. Assim como dos 600 milhões de europeus. Se juntarmos a toda esta gente, a população da Austrália, do Japão, da Coreia do Sul, da Rússia e de mais alguns cantinhos economicamente desenvolvidos, obtemos impactos desastrosos sobre o ambiente terrestre. O desenvolvimento gera mais desenvolvimento, isto é, promove maior liberdade e igualdade económicas que, por sua vez, intensificam os consumos de bens e de serviços. E aposto que você, sempre que parou um segundo para questionar todas estas coisas (se é que o fez!), imediatamente afastou estas ideias da cabeça e continuou a conduzir destravadamente ou correu para o shopping para comprar mais um brinquedo que lhe pudesse afagar o ego, certo?
A humanidade é composta tanto de altruísmo quanto de egoísmo. Não importa se você tem mais duma ou doutra. Interessa-nos apenas o resultado agregado das escolhas humanas. E não são as excepções à regra que contam. Na hora da verdade, quando as pessoas tomam decisões, é o padrão que conta. Afinal de contas, vivemos numa democracia, pelo que são as decisões da maioria que contam. Certamente que você não acredita que, em 1939, todos os alemães desejavam a guerra. Aqueles que decidiram ser uma corajosa e louvável excepção, foram engolidos pelos acontecimentos. E você, que hoje em dia reclama devido ao preço dos combustíveis e dos alimentos, o que acha que fará quando eles forem tão caros que comecem a causar-lhe problemas sérios? Nessa altura, o que virá à tona da água: o egoísmo ou o altruísmo? Quando você perceber que a satisfação das suas necessidades e dos seus interesses económicos e materiais se encontram em rota de colisão frontal com as necessidades e os interesses económicos e materiais de outros habitantes deste planeta, o que irá fazer você? Ou antes, coloquemos o dilema num plano ética e axiologicamente mais complexo, mais duro e de resposta mais difícil: quando os seus interesses materiais colidirem de frente com os seus valores de solidariedade, igualdade, justiça social, paz e liberdade, que irá você fazer?
Os seus dilemas e as suas escolhas individuais pouco importam se não perceber o que se está a passar. E, se você continuar a raciocinar dentro dos limites de um formato civilizacional, ideológico ou religioso, você irá fazer o que os seres humanos sempre fizeram em situações semelhantes. Irá apontar o dedo a um grupo qualquer, dizendo que a culpa é toda deles, e irá votar em líderes políticos que pouco ou nada se diferenciarão de Hitler ou de Estaline.
Sim, quando tudo isto ocorrer, estaremos lamentavelmente a pisar um terreno fértil para a emergência dos Discursos Heterofóbicos (fobia à diferença, ao outro, à diversidade). Designo por Discursos Heterofóbicos todo e qualquer discurso simbólico, subjectivamente construído, normalmente de cariz radical, destinado a manipular a opinião, a consciência e as escolhas dos cidadãos, sustentado na construção de “verdade absolutas” baseadas no ódio, na aversão ou na atribuição da culpa a grupos sociais específicos. Assim, são exemplos de discursos heterofóbicos, os discursos racistas, xenófobos, nacionalistas, homofóbicos, enfim, todos os discursos que se sustentam segundo lógicas arbitrárias, destinadas a discriminar pessoas, comunidades ou grupos sociais com base na raça, na etnia, no género, na ideologia, na classe social, na religião, etc.
Num contexto difícil, como esse que se aproxima, o terreno será mais do que propício a todo o tipo de discursos demagógicos. À Direita e à Esquerda, não faltarão soluções fáceis e dedos apontados em certas direcções. Será uma época excelente para o despontar de novos generais e de novos cardeais, todos eles com soluções baratas, rápidas e que prometerão milhões. O caminho estará aberto à insanidade, em todo o seu esplendor, brilho e encanto. E a humanidade poderá cair nas mãos de novos Hitlers e de novos Estalines, uns a dizer que temos de exterminar um qualquer povo (ou povos) e outros a dizer que temos de exterminar uma classe qualquer (os ricos ou os pobres). E você sabe tão bem como eu que, nessa altura, os generais terão ao seu dispor armamento que teria feito as delícias de Adolf Hitler. E, é claro, para além dos generais, virão os cardeais, apontar o dedo aos depravados que despertaram a ira divina. E, por isso, centenas de milhões de seres humanos irão a correr, entregar-se voluntariosamente nas mãos das religiões e dos seus desígnios medievais. E, nessa altura, despertará o “melhor” da humanidade. Voltaremos a assistir a cenas que julgávamos pertencerem definitivamente ao passado. Iluminar-se-ão altares, destruir-se-ão bibliotecas, queimar-se-ão cientistas, bruxas, depravados, escritores e intelectuais. E você, quem sabe, vai estar na primeira fila, a soprar a fogueira, para que a insanidade não morra.
Sim, a humanidade não conseguiu libertar-se das grilhetas da heterofobia. Continuamos a acreditar na bondade dos discursos nacionalistas, ideológicos ou religiosos e a adorar as encenações rituais que todas as instituições desse género são capazes de montar, para deleite das nossas almas e exaltação dos nossos espíritos. Quando surgir o tempo da longa derrocada, você irá a correr prestar vassalagem a um templo qualquer, sendo irrelevante se esse templo tiver sido erigido para maior glória de um qualquer Deus, de um qualquer Hitler ou de um qualquer Estaline. Quem sabe se você não será um dos primeiros a bater com a mão no peito, a jurar fidelidade e a apontar o dedo para um descrente que deve ser enviado para a fogueira?
Não me diga que está à espera de Deus para que tudo corra bem e para que estes cenários catastróficos não sucedam? Nunca ouviu dizer que já foi decretada a morte de Deus? Olhe, não é para ser desmancha-prazeres mas, na melhor das hipóteses, Deus está a dormir (profundamente)!
E, enquanto Deus Sonha, o Homem quer e a merda nasce!
Para terminar este post, gostaria de deixar apenas um pequeno exemplo ilustrativo. Imagine você que Bill Gates acordava um destes dias com a síndroma de S. Francisco de Assis e decidia desfazer-se de toda a sua colossal fortuna de 60 mil milhões de dólares(!!!), entregando-a nas mãos de dezenas ou de centenas de milhões de pobres. Certamente que você, como eu, e como a maior parte do mundo, aplaudiria emocionadamente de pé semelhante acto altruísta. Até aposto que rapidamente surgiriam petições na internet para exigir que a Igreja Católica decretasse imediatamente, com carácter retroactivo, a santidade de Bill Gates, assim como a dos seus antepassados até à 3ª geração. E São Bill poderia morrer descansado porque jamais alguém teria pago semelhante exorbitância por uma indulgência.
Bem, mas o que importa, uma vez mais, são as consequências: quando Bill Gates almoça, almoça uma refeição. E quando compra uma casa (que deve ter dezenas delas), é de uma casa que estamos a falar, mesmo que toda ela esteja a abarrotar do mais absurdo e ostensivo luxo. E quando Bill Gates toma um café, estamos a falar apenas de um café. E quando ele fala ao telemóvel ou vê televisão, estamos a falar apenas de um telemóvel (certamente topo de gama) e apenas de uma televisão. E é claro que, se ele quiser, pode ter dezenas de telemóveis pessoais e centenas ou milhares de televisões mas suponho que não será bem assim. Mesmo que todos os quartos de todas as casas dele tenham televisões (o que será um absurdo), estaremos a falar de algumas dezenas de televisões.
Que sucederia se toda a fortuna de Bill Gates fosse parar às mãos de alguns milhões de seres humanos? Acham que iam a correr enfiar o dinheiro nos colchões? O que é que esses milhões de seres humanos fariam? Consumir, claro! Não é o que você faria? Ou vai-me dizer que nunca equacionou as decisões que tomaria se acertasse no Euromilhões? Por isso, certamente que o mundo seria muito mais agradável, mais equilibrado, mais justo, mais igualitário, se Nossa Senhora de Fátima aparecesse a Bill Gates e ele se desfizesse da sua fortuna a favor dos mais pobres do mundo. Seria um gesto de uma magnitude a todos os níveis louvável. Mas, uma vez mais, ninguém se iria preocupar com as consequências decorrentes do consumo absurdo provocado por todos esses milhões de seres humanos. Uma vez mais, que fique bem claro: eu não prefiro um mundo desproporcionadamente diferenciado, em que uns têm quase tudo, enquanto imensos não têm quase nada. Eu também detesto um mundo feito de desigualdades profundas, onde seres humanos morrem à fome e são vítimas das mais miseráveis condições de vida. O que está em causa, não é o valor da igualdade, que é um valor que devemos proteger, acarinhar, defender e valorizar. Não podemos ser irresponsáveis e julgar que as consequências de um mundo igualitário são as mesmas, quer sejamos 600 milhões, 6.000 milhões ou 60.000 milhões.

Do Aquecimento Global ao Arrefecimento da Globalização: A Sociedade do Risco

Presumo que já ficaram claramente demonstrados dois aspectos: 1º Que as mudanças sociais que apresento não são de todo impossíveis; 2º Que estou muito longe de desejar que elas ocorram. O que não posso fazer, como é evidente que muitos fazem, é enterrar a cabeça na areia, fingir que está tudo bem e que não existe um risco significativo de ocorrência dessas mudanças drásticas. Julgo ter evidenciado a infantilidade daqueles que nos asseguram que um cenário catastrófico é para pôr completamente de parte. Independentemente de acreditarmos que esse cenário é pouco, algo ou muito provável, devemos debruçar-nos sobre ele, porque só o poderemos evitar se estivermos preparados para tal. Mesmo que muito pouco provável, o impacto de um cometa com o Planeta Terra não é impossível. Conhecer, com uma antecedência de décadas, uma possível trajectória de colisão não é a mesma coisa que sabê-lo com uma semana de antecedência.
Recordam-se de Winston Churchill? Passou anos a alertar a Europa e o Mundo para os riscos do regime nazi. Foi tomado por lunático, belicista, irresponsável, inconsequente. Os apaziguadores, os cegos e os diplomatas de então acabaram todos por pagar um preço elevadíssimo pelo risco que correram. Mas o risco a que a nossa sociedade global está sujeita é muito maior e bastante mais perigoso. A tecnologia de que dispomos possui um poder destrutivo infinitamente maior do que o existente na II Guerra Mundial. E a população mundial, entretanto, quase triplicou nestes últimos 60 anos: em 1945 a população mundial rondava os 2300 milhões e em 2005 já vai nos 6500 milhões. Dentro de 4 décadas seremos 9100 milhões, com a Índia e a China à cabeça dos países mais populosos do mundo. Acha que, num mundo superpovoado, os conflitos étnicos, religiosos e internacionais, assim como os múltiplos interesses geoestratégicos, não virão à tona da água com uma facilidade abismal? Pressupor o contrário é, no mínimo, ingénuo e, no máximo, irresponsável.
A população da Índia era de 689 milhões em 1980. Passados 25 anos, era de 1103 milhões. A China tinha 999 milhões de habitantes em 1980. Hoje, tem cerca de 1350 milhões. Sabe quantos anos são necessários para que o volume demográfico duplique, se a taxa de crescimento populacional for de 2%/ano? 35 anos! E se a taxa de crescimento for de 3%, 24 anos são suficientes para que a população duplique. Foi mais ou menos isso que sucedeu, com estes e com muitos outros países em vias de desenvolvimento, ao longo da segunda metade do século XX. E agora, que atingimos proporções verdadeiramente infernais, em matéria de efectivos humanos, eles estão a atingir progressivamente os mesmos patamares de consumo que têm sido possíveis apenas no mundo ocidental. Por isso, não se admire com o aumento dos preços dos alimentos, dos combustíveis e de muitos outros bens fundamentais. É que, até aos finais dos anos 80, a Economia mundial estava orientada para satisfazer os elevados padrões de consumo do mundo desenvolvido e para dar uma resposta mínima às necessidades básicas da grande maioria da população dos países em vias de desenvolvimento. Mas, a partir do momento em que as economias emergentes despontaram (entre outras razões, como consequência do desmoronamento do Bloco Soviético), a pressão da procura sobre a oferta não tem parado de aumentar continuamente. E tem aumentado a um ritmo superior às capacidades de resposta da oferta. E você, desconhece por acaso que este planeta se encontra ambientalmente à beira do colapso devido à desflorestação contínua, à exploração dos recursos naturais, ao consumo desenfreado de matérias-primas e de recursos energéticos, assim como ao aquecimento global, à emissão contínua de gases de efeito de estufa, à desestabilização do clima, à destruição dos ecossistemas ou à extinção massiva de espécies (sabia, por exemplo, que, actualmente, se estão a extinguir espécies animais e vegetais a um ritmo 1000% superior ao registado há pouco mais de 1 século?)? E, para que o planeta chegasse a este estado, bastou o ritmo de consumo massivo das populações dos países desenvolvidos, ao longo do século XX. Agora, faça as contas e imagine os impactos ambientais resultantes do facto de sermos, não mil milhões de consumidores com elevados padrões de consumo, mas sim o dobro ou o triplo. E não se esqueça que os restantes milhares de milhões de seres humanos também têm direito a uma refeição. Vejamos um pequeno exemplo: sabia que o consumo de leite de vaca não faz parte da dieta regular dos chineses? Recentemente, o governo chinês aconselhou os seus cidadãos a consumir pelo menos meio litro de leite por dia. Não acha que é uma excelente medida? Claro que é! Pois é óbvio que todos preferimos uma população devidamente alimentada. Mas, por acaso, acha que o mercado mundial tem já ali, ao virar da esquina, umas centenas de milhões de litros de leite de vaca adicionais para fornecer diariamente aos chineses? Basta que uma pequeníssima parte dos chineses sigam a recomendação do seu governo, para que o preço do leite aumente. E você acha bem? Claro que acha bem. Você quer comprar leite ao preço da chuva e quer que todos os outros (chineses, indianos, africanos e sul americanos) tenham o mesmo direito. Mas fica furioso se for comprar leite e verificar que o preço aumentou 20% ou 40%. E olhe que vai aumentar muito mais quando o número de chineses que consome leite diariamente passar de alguns milhões para algumas dezenas de milhões ou mesmo centenas de milhões. Ah, sim, é claro que podemos deitar abaixo mais umas centenas de quilómetros quadrados de floresta para criar mais uns milhões de vacas para providenciar isto tudo. Acha mesmo que tudo tem uma solução simples como esta? E acha esta solução simples? Sim, claro, porque de certeza que você não está disposto a pagar uma exorbitância por um litro de leite. E isto, meus caros, é apenas um pequeníssimo exemplo. Já pensou no que está a suceder ao mercado mundial de combustíveis? Sabe como têm evoluído os preços das matérias-primas nos últimos anos? É a Economia, estúpido! A China acordou, e com ela toda uma série de economias emergentes, e os seus cidadãos começaram a habituar-se a fazer o mesmo que você: comprar casa, carro, viajar cada vez mais, comprar regularmente vestuário e calçado, melhorar significativamente os padrões de consumo alimentar, no fundo, aumentar exponencialmente o consumo.
Por isso, pare e pense nas consequências do que deseja para si, para a sua comunidade, para a sua sociedade e para a humanidade no seu todo. É claro que eu desejo, como você, e todos nós, um mundo mais livre e mais igualitário, do qual a pobreza não faça parte, quer materialmente, quer culturalmente. Mas, não julgue que os recursos deste planeta são elásticos ao ponto de poder responder às necessidades de uma população crescentemente voraz, gulosamente irresponsável, insanamente depredadora. E, se reparar bem, dentro de 3 ou 4 décadas ir-se-ão conjugar em simultâneo uma série de ameaças muito preocupantes: efeitos e consequências do aquecimento global, esgotamento do petróleo convencional, pressão ambiental em contínuo crescimento e um volume populacional verdadeiramente aterrador.
O aquecimento global, por um lado, irá levar ao derretimento progressivo das calotes polares (nas quais se encontra, na forma de gelo, a maior parte da água doce do planeta), que terá como consequência o aumento do nível médio dos mares, o que conduzirá ao deslocamento de centenas de milhões de seres humanos das áreas litorais inundadas para outras regiões, aumentando significativamente os impactos e as pressões ecológicas e ambientais de certas regiões, já para não falar dos elevadíssimos prejuízos daí decorrentes ou das tensões sociais resultantes desses deslocamentos. A solidariedade social irá ser posta à prova, nessa altura, de forma muito evidentes, não só entre povos, mas mesmo dentro de cada comunidade. A desflorestação progressiva do Planeta Terra (sabia que, em cada 5 segundo, uma área florestal equivalente a um campo de futebol, é devastada? Isso dá 17 280 campos de futebol por dia e 63 141 120 campos de futebol por ano), feita essencialmente para aumentar os campos de produção agrícola, destinados a responder às necessidades alimentares (e também de locomoção) da humanidade, reduzem, cada vez mais, a capacidade do nosso planeta regular os gases de efeito de estufa, principalmente do dióxido de Carbono, aumentando perigosamente a instabilidade climática (que, por sua vez, afecta a eficiência agrícola), com um aumento significativo dos prejuízos económicos e sociais decorrentes das catástrofes naturais. A pressão humana está também a reduzir drasticamente muitas espécies animais e vegetais, conduzindo-as à extinção, na pior das hipóteses, ou à desestabilização total dos ecossistemas, na versão menos aterradora. O permafrost (solos permanentemente congelados) do Canadá e da Sibéria tem estado a derreter a um ritmo assustador, libertando para a atmosfera as imensas quantidades de carbono alojadas durante milénios nesses solos, aumentando, portanto, os efeitos do aquecimento global. Muitas fontes aquíferas irão secar sob pressão do consumo humano (o Lago Chade, outrora o 6º maior do mundo, secou em 40 anos, e encontra-se no centro da tragédia do Darfur). Estamos fechados num ciclo vicioso (que está muito longe de se limitar a estes pequenos exemplos que eu aqui apresentei), no qual mais efectivos humanos exigem mais do planeta, colocam em risco o ambiente planetário e intensificam os efeitos da actividade humana sobre o equilíbrio ambiental.
Se o aquecimento global, só por si, já é razão para nos preocuparmos significativamente com as mudanças que se avizinham, imagine o que aí vem se juntarmos à equação uma variável aterradora: o esgotamento do petróleo convencional. O petróleo que consumimos é uma das fontes energéticas economicamente mais lucrativas e ecologicamente mais poluidoras, mas também é uma das mais flexíveis, pois é capaz de ser usada de forma diversificada e para fins distintos. O petróleo demorou milhões e milhões de anos a acumular-se, mas a sua utilização massiva pelo homem tem apenas cerca de um século. Tenha em conta que foram os países desenvolvidos, ao longo do século XX (e, em especial, na segunda metade deste), que consumiram a maior parte do petróleo produzido desde então. E sabe que já atingimos o pico do petróleo? Isto é, já esgotámos mais de metade das reservas mundiais, sendo que o pouco que resta por explorar e descobrir está a ser consumido por um número crescente de seres humanos, o que diminui significativamente a “esperança de vida” dessas reservas. Dentro de 3 ou 4 décadas, o petróleo convencional ter-se-á esgotado e teremos de arranjar outras fontes energéticas. E sabe que, todas juntas, dificilmente conseguirão suprir as necessidades actualmente satisfeitas pelo petróleo convencional? E sabe que quase todas as fontes energéticas alternativas ao petróleo, encerram problemas técnicos, ambientais e económicos difíceis de superar? E já parou para pensar um pouco sobre tudo aquilo que você tem devido ao petróleo? Já parou para pensar que todo o crescimento e desenvolvimento económicos de que você beneficia decorrem, em grande parte, do facto de termos beneficiado, ao longo do século XX, de uma fonte energética barata e flexível como o petróleo? E já reparou que tudo o que você consome, tem petróleo incorporado? E que toda a Economia funciona baseada na existência dessa fonte energética? Mas continua convencido que, quando o petróleo se esgotar, outras fontes energéticas igualmente milagrosas cairão do céu para providenciar as necessidades de uma humanidade vorazmente consumista, não é? Continue confortavelmente sentadinho no seu sofá e depois não diga que não foi avisado.
Nas últimas décadas, o consumo de petróleo tem aumentado, à escala mundial, a uma taxa de 2% ao ano. O que quer dizer que, desde os anos 70, duplicámos o consumo desse bem. Sucede, no entanto, que o crescimento astronómico das economias emergentes tem estado a pressionar continuamente o mercado petrolífero e, como tal os preços estão a disparar para níveis absurdos. Recorda-se quando o petróleo estava cotado a 20 dólares? Não foi há muitos anos. Recorda-se quando estava cotado a 60 dólares? E o limite dos 100 dólares, que parecia uma barreira absurda de ultrapassar? E agora já anda próximo dos 120. E aposto que você anda com vontade de gritar: “BASTA! Isto é um escândalo!” Mas, se for de Direita, aposto que continua a defender que temos de aumentar a riqueza. E se for de Esquerda, aposto que continua a defender que temos de dividir a riqueza. E para que é que uns e outros desejam mais riqueza? Para consumir mais. Há sempre um electrodoméstico para substituir, uns sapatos a comprar, um livro para ler (que se calhar ficará esquecido numa estante). E tem de passear, que o tempo até está bom para isso, e até nos dizem que o Turismo é uma das actividades económicas mais promissoras para os próximos anos. É, não é? Vai ser é um balão que vai esticar e irá rebentar nas nossas caras. E aposto que continua convencido que estamos a assistir a uma crise no mercado do petróleo, não é? Acha mesmo que é uma crise? Ilusões há muitas!
Antes do 1º choque petrolífero (1973), os veículos automóveis bebiam combustível como um alcoólatra bebe aguardente. Depois disso, os fabricantes fizeram esforços significativos para aumentar a eficiência energética dos veículos e, de facto, conseguiram-se avanços muito significativos. Assim, todos ficámos satisfeitos, sob o ponto de vista económico e ambiental, porque os automóveis familiares reduziram para metade o consumo médio de combustível por cada 100 Km. No entanto, repare bem no caso português: em 1973, o parque automóvel era comporto por 766 mil veículos; em 2006, o parque automóvel era superior a 5.6 milhões de veículos! Fantástico, não? Reduzimos o consumo médio de combustível por automóvel, mas multiplicámos por 7 o número de veículos em circulação. O que quer dizer que, colectivamente, a nossa factura energética disparou assombrosamente. E aposto que você aplaude de pé, todo satisfeito porque atingimos patamares civilizacionalmente desejáveis por todos e, principalmente, PARA TODOS! Mas aposto que não pára um instante para pensar sobre as consequências deste tipo de opções à escala mundial, pois não? Dá dores de cabeça, já anda muito stressado, tem muitos problemas para resolver e os governantes que pensem nisso e arranjem uma solução, porque é para isso que lá estão e você não está para se chatear com essas coisas, não é?
Mas você continua a barafustar por causa do preço do petróleo, não é? E aposto que anda completamente despreocupado com o facto do planeta Terra ter 6.5 mil milhões de habitantes. E também lhe é indiferente que, em 2050, sejamos 9 mil milhões? Quem sabe, para si é irrelevante que sejamos 20 mil milhões? E que todos eles podem e devem ter pão, leite e mel (e petróleo para passear de um lado para o outro de barriga cheia). E o Planeta Terra que vá aguentando. Quando estourar, que estoure. A culpa não é minha, dirá você, até porque eu sou uma formiga no meio de um grande formigueiro e é muito mais simples atirar a culpa para cima da globalização, dos neo-liberais, dos chineses, dos EUA, dos muçulmanos, dos ricos ou de outro qualquer. No fundo, você continua a raciocinar no quadro de uma nação, de uma religião ou de uma civilização. Mas não consegue raciocinar à escala global. Não consegue ultrapassar os limites e as fronteiras do formato axiológico que lhe enfiaram na cabecinha e continua a apontar o dedo a alguém, apenas para justificar a sua própria irresponsabilidade. Não lhe passa pela cabeça questionar fortemente e seriamente o sindroma do “Crescei e multiplicai-vos” de que sofre a Humanidade, pois não? Recorde-se que éramos 2.3 mil milhões em 1945 e hoje somos 6.5 mil milhões. E a coisa está imparável. Apenas alguns países desenvolvidos têm os seus volumes demográficos relativamente estáveis. Mas você anda preocupado porque a natalidade portuguesa anda baixa. Temos de aumentar a natalidade, dizem muitos (a começar pela Direita do CDS). Recorda-se de Cavaco Silva a discursar sobre o assunto, a perguntar o que seria necessário para os portugueses terem mais filhos? E a Igreja Católica, já agora, não tem nada a dizer a mundo? Quando será que o Papa Bento XVI se irá lembrar de dizer aos seus fiéis que a ordem divina do “Crescei e multiplicai-vos” deve ser suspensa por algumas décadas até ordens contrárias emanadas do Paraíso? Estão à espera de criar o Inferno na Terra, um espectáculo a exibir em simultâneo em todos os canais, connosco sentados na primeira fila, a assistir, em primeira mão, em directo e ao vivo, como protagonistas de um filme de terror e de horror que vai rebentar a escala de classificações do júri do Fantasporto para toda a eternidade? Ah, mas é complicado para a Igreja Católica, assim como para muitas outras religiões, admitir que um casal pode ter relações sexuais sem ser com fins procriativos, não é? E você, se for católico apostólico romano, até acha muito bem, porque o sexo é uma coisa porca badalhoca e só se deve praticar, como manda a santa madre igreja, isto é, com o objectivo de meter neste Planeta mais um consumidor birrento, que fica stressado se não tiver uns tostões para passear de carro (de preferência a altas velocidades) ou para ir todos os meses ao shopping comprar uns trapinhos de marca.
Nota Final: se você pertence ao grupo de militantes anti-globalização, e é daqueles que passa a vida a barafustar contra este neo-liberalismo explorador, recordo-lhe apenas duas coisas: a) que você reclama da globalização mas certamente passa a vida a reclamar por mais rendimentos, menos impostos, mais igualdade económica e preços mais baixos no supermercado, o que quer dizer que você não passa de um consumista inveterado que quer sol na eira e chuva no nabal; b) que a experiência soviética nada teve de neo-liberal, antes pelo contrário, e, no entanto, constituiu-se como um dos episódios ambientalmente mais tenebrosos da História da Humanidade, como resultado da depredação descuidada, irresponsável e insana dos recursos naturais, tendo resultado na degradação total de vários ecossistemas, coisa que, aliás, a China está a repetir a uma escala absurda. Por isso, deixe-se de respostas fáceis. As culpas estão repartidas por todos, à Esquerda e à Direita. E uma das causas para termos chegado onde chegámos resulta precisamente das lógicas tautológicas simplificadas que apontam o dedo em certas direcções para mais facilmente eliminar o sentimento de culpa. É sempre fácil arranjar bodes expiatórios, não é?

terça-feira, 29 de abril de 2008

Da natureza do Homem Moderno

Dos limites da Igualdade e da Liberdade num mundo sobrepovoado!
Mais do que alguma vez o foi, a nossa existência é antropocêntrica e cronocêntrica. Antropocêntrica, porque conduzimos o destino do Planeta sem qualquer respeito pelas outras espécies que nele habitam e cronocêntrica porque não nos preocupamos seriamente com as gerações futuras. Somos a espécie mais inteligente de que temos conhecimento mas estamos a conduzir o Planeta para uma catástrofe ambiental de proporções apocalípticas, e estamos a levar as sociedades humanas por caminhos perfeitamente demagógicos e desproporcionados, numa orgia vorazmente consumista que faz de nós, humanos, a maior de todas as pragas e o maior de todos os predadores que jamais puseram os pés na Terra.
Dentro de 3 ou 4 décadas irão coincidir uma série de ameaças e riscos para a humanidade que, conhecendo todos nós a história do comportamento humano ao longo de séculos e milénios, nada de bom nos augura para quando essa coincidência ocorrer: aquecimento global, depleção do petróleo (convencional), destruição ambiental generalizada e, acima de tudo, como corolário de todas as ameaças, um volume demográfico humano de proporções aterradoras. Quando tudo isto se conjugar, em simultâneo, não serei eu a por as mãos no fogo pela sobrevivência da espécie humana.
Mudemos parcial e momentaneamente de assunto para voltarmos depois ao cerne da questão. Quando pensa em si próprio e nas pessoas que o rodeiam, certamente que gosta de se ver a si próprio como alguém civilizado, minimamente culto, preocupado com o mundo, com a pobreza, com a igualdade e com a distribuição de recursos, de riqueza e de bem-estar. Certamente que não tem si e dos seus a imagem de pessoas incivilizadas. No entanto, já parou para pensar sobre o facto inusitado de termos de conviver nos nossos tempos, tempos que acreditamos serem os mais civilizados de sempre, com fenómenos que julgávamos completamente eliminados da História da Humanidade, como os fenómenos da escravatura de seres humanos, exploração desenfreada e demente de pessoas, tráfico de pessoas, crianças e órgãos humanos, redes de abuso sexual de menores, etc, etc, etc., numa escalada de horrores que coloca a nossa civilização em patamares não muito diferentes dos tempos do esclavagismo generalizado?
No entanto, quando pensamos nos nossos próprios actos, quando nos vemos pessoalmente ao espelho, jamais nos consideramos pessoas incivilizadas. Nós estamos longe dessa barbárie. Não somos nós que praticamos esses actos horríveis. Mas, já se perguntou a si próprio o que faria você, os seus familiares, os seus vizinhos, as pessoas que se cruzam todos os dias consigo, se o mundo sofresse uma catástrofe de proporções inimagináveis, decorrente da ruína total das instituições políticas democráticas, da destruição da economia global, da ausência de recursos ou de alimentos? Acha que continuaria a comportar-se como uma pessoa civilizada se o mundo à sua volta se transformar num caos completo, onde a insegurança, a instabilidade e a violência estarão presentes em qualquer lugar e a todos os instantes? Recordemos os atrozes sucessos das confusões recentes no Ruanda, onde cerca de um milhão de seres humanos foram queimados vivos, mortos à catanada e objecto de todo o tipo de arbitrariedades com base em critérios meramente étnicos. Nada disso tem a ver connosco, dirão. Não fomos nós. Nós somos europeus e civilizados. Jamais faríamos o mesmo, dirão muitos de vós. Mas, ainda não há muito tempo, em plena Europa, povos supostamente civilizados envolveram-se em guerras fratricidas com actos não menos bárbaros do que os ocorridos no Ruanda. Na ex-Jugoslávia, Croatas, Sérvios e outros que tais, envolveram-se em conflitos de tal ordem que envergonham qualquer membro da espécie humana. Eu, como todos vós, li na comunicação social episódios em que pessoas que sempre tinham sido vizinhos, que conviviam quotidianamente uns com os outros, se mataram recorrendo a todo o tipo de atrocidades. Sim, eu também li aquelas histórias em que homens obrigaram outros a arrancar com os dentes os testículos de outros homens. E este é apenas um pequeno exemplo do horror que nós, humanos, somos capazes de executar, em nome da nação, da etnia, da religião ou dos interesses económicos. Mas, somos civilizados, não somos? Somos Europeus, residimos em países desenvolvidos, cultos e pacíficos, não é? Pois, convirá recordar que foram os europeus que deram início a duas guerras mundiais (eu defendo mais a tese de que se tratou duma tragédia em dois actos) e que, pasme-se, foi o país mais civilizado da Europa que esteve no centro dessa barbárie. A Alemanha de Kant, Hegel, Marx , Nietzsche, Bach, Haendel, Mozart, Beethoven, Brahms, Schumann, Wagner, Goethe, Thomas Mann, Herman Hesse, Brecht, Kepler, Max Weber, Einstein e tantos outros, cuja memória agora não recordo, esteve na origem de uma incivilidade jamais visionada pela humanidade. Mas eram civilizados, não eram? E cultos? E prósperos? Acha mesmo que a barbárie não pode voltar, em todo o seu esplendor, gula e voracidade só porque alcançámos patamares civilizacionais elevados e pertencemos a um mundo desenvolvido? Está convencido que tudo isto é impossível? Ou extremamente improvável? Acha mesmo que está bem sentado no seu confortável sofá e que é impossível o mundo levar uma reviravolta destas?
E não, não se confunda. Eu não estou a fazer a apologia da barbárie. Quem me dera que nada disto viesse a ocorrer. Sou o primeiro a desejar que nada disto se concretize. Mas, se ocorrer, irá ocorrer a uma escala monstruosa porque nos nossos tempos está tudo ligado. A nossa sociedade global é um edifício cuja estrutura assenta numa rede de relações e de dependências intrínsecas. As ameaças ao nosso mundo merecem, por isso, uma análise bastante cuidada porque o que está em risco é demasiado: demasiadas vidas humanas, demasiados interesses, demasiados direitos e deveres, demasiados sentimentos e emoções.
Que quer a Humanidade? Ou antes, que quer cada ser humano? Uma resposta possível, que para estes efeitos serve muito bem, diz-nos que cada ser humano deseja a satisfação das suas necessidades. E quais são as necessidades humanas a serem satisfeitas? Apesar de um pouco ultrapassada, podemo-nos orientar pela célebre pirâmide de Maslow, segundo a qual cada um de nós seguirá uma lógica mais ou menos hierarquizada que passa primeiro pela satisfação de necessidades fisiológicas (relativas à sobrevivência básica, como a alimentação ou a protecção contra a natureza), seguidas das necessidades de segurança (estabilidade, segurança económica e social), das necessidades sociais (relativas ao relacionamento afectivo e à sociabilidade humana), das necessidades de auto-estima (relativas à promoção e ao desenvolvimento do respeito próprio, do estatuto e do prestígio sociais, consideração social, independência, etc.) e, finalmente, em último lugar, as necessidades de auto-realização (relativas à realização intelectual, moral, espiritual, etc.). Deixemos de lado as imensas críticas à teoria de Maslow, mesmo tendo em conta que há seres humanos que não seguem esta lógica hierárquica, porque o que aqui nos traz é o padrão do comportamento humano e não as excepções. Sucede que, à partida, nenhum ser humano procura satisfazer a sua necessidade de ler um livro, ver um filme ou ouvir uma música se estiver esfomeado ou a morrer de sede. Voltarei a esta questão posteriormente, para desenvolvimentos mais específicos.
Bem, mas de quem estamos a falar? Do Homem Moderno (TODOS NÓS), que surgiu da derrocada do Antigo Regime e do alvor da Modernidade: o Homem Moderno que surgiu do pó e do sangue das revoluções inglesa, francesa, norte-americana e industrial. Numa outra perspectiva, também ela simples, o Homem Moderno aspira à realização desses três grandes valores: Liberdade (económica, social, política, cultural, axiológica, intelectual), Igualdade (económica, social, política) e Fraternidade (económica, social, cultural, religiosa, política) e tudo isto, se possível, em diferentes escalas territoriais (mundiais, internacionais, nacionais). Sabemos, no entanto, que há diferenças significativas quanto ao cumprimento destas necessidades. Se é certo que, no mundo desenvolvido (Europa, norte da América, Austrália, Japão e pouco mais) estão cumpridos patamares minimamente aceitáveis de desenvolvimento económico, social e político, onde se respira liberdade, igualdade e fraternidade, e onde é relativamente raro o cidadão que não possa satisfazer minimamente as suas necessidades, também é certo que ainda existem regiões do planeta onde quase tudo isto está por cumprir-se e onde subsistem desigualdades profundamente aberrantes aos nossos civilizados olhos.
Que sucedeu ao longo da segunda metade do Século XX? Os povos do mundo desenvolvido prosperaram e viram as suas necessidades progressivamente serem satisfeitas, enquanto milhares de milhões de seres humanos viviam num regime de baixo consumo, nos quais mal conseguiam satisfazer as suas necessidades básicas.
Mas, uma vez mais pergunto: que quer o Homem Moderno? A humanidade caracteriza-se pela insatisfação e, como tal, faz parte da natureza humana querer mais, sempre mais, mais e mais. Assim que um ser humano satisfaz as suas necessidades básicas, imediatamente percorre o olhar à sua volta para ver o que pode “agarrar”. Cada ser humano deseja ter sempre mais e é claro que cada um de vocês acha bem. Eu sou um dos primeiros a achar bem. Mas, esperem lá. Será que é a mesma coisa termos um planeta habitado por mil milhões de pessoas, cada uma delas a querer mais, ou termos um planeta de 6 mil milhões de pessoas, cada uma delas a querer mais, e mais, e mais?
O mundo desenvolvido tem pouco mais de mil milhões de pessoas (entre os quais nos incluímos) e essas pessoas foram responsáveis pelo consumo de grande parte do petróleo consumido até hoje. No entanto, as economias emergentes, entre as quais se destaca a Índia (com cerca de 1.1 mil milhões de habitantes) e principalmente a China (com cerca de 1.3 mil milhões de pessoas) estão a crescer a ritmos assustadores. Nas últimas duas décadas, a China tem registado crescimentos económicos regulares superiores a 9% (o que significa que, em cada 8 anos, duplicou o valor do seu PIB).
Por isso, chegámos a uma encruzilhada: existem recursos neste Planeta para todos? É possível continuar a conceder liberdade económica a mais seres humanos? É possível continuar a distribuir riqueza por mais seres humanos? Aparentemente, é! Você olha à sua volta e parece que o mundo continua regularmente a girar debaixo do Sol, sem se observarem grandes convulsões, não é? Por isso, se alguém lhe perguntasse se você é a favor de mais igualdade e de mais desenvolvimento para o resto do Mundo, certamente que responde que sim. Você e eu também! Que é aquilo que todos no fundo desejamos: um mundo mais livre, mais igualitário, mais rico, mais próspero. E, se alguém lhe perguntar se acha que todos nós devemos ter mais rendimentos, menos impostos, mais riqueza para todos nós, você também responde que sim, não é? Fomos todos formatados para isso, não é? Todos queremos mais, sempre mais. Mas, quantos de nós se interrogam quanto às consequências de darmos a 6 mil milhões de seres humanos mais, sempre mais?
Será necessário recordar que a China, só por si, irá duplicar os efeitos consumistas de todo o mundo desenvolvido e que a Índia vai pelo mesmo caminho? Será necessário recordar que os demógrafos antecipam uma população de 9 mil milhões de seres humanos para o ano de 2050?!!! E você, continua a achar que podemos continuar a criar riqueza e a distribuir riqueza por toda essa gente? E já parou para pensar nas consequências ambientais para um Planeta exangue como o nosso? E quem é que o pôs assim? Nós, os habitantes dos países desenvolvidos (que somos pouco mais de mil milhões). Já imaginou as consequências ambientais para este planeta quando, em vez de sermos mil milhões de seres humanos com padrões de consumo elevadíssimos, formos 6 mil milhões (para além dos restantes 3 mil milhões que também terão de ser alimentados e vestidos)? Sim porque você acha muito natural desejar sempre mais, não é? E acha natural que todos devemos e podemos desejar sempre mais. Toca a criar riqueza, dizem-nos à Direita, e toca a distribuí-la, dizem-nos à Esquerda. E você continua a achar que está tudo bem e que nada disto é um caminho insano. Continua a achar que tudo isto é natural, bom, responsável, humano, humanitário, civilizado. Claro que é. Eu também pensava assim. No fundo, eu também penso humanamente, civilizacionalmente, axiologicamente assim. Mas, se não nos interrogarmos sobre os limites do que estamos a fazer, sobre as consequências do alargamento dos elevados padrões de consumo, o destino próximo da Humanidade ficará traçado em linhas muito grossas e muito duras.
Qual seria a sua reacção perante um político que viesse com este discurso: é necessário controlar draconianamente a natalidade humana, reduzir significativamente os níveis de consumo, impor regras rígidas no que se refere à agressão ambiental e reduzir drasticamente a factura energética? É preciso dizer que tipo de sucesso teria este político? É preciso dizer quantos de todos nós, que somos muito civilizados, inteligentes e cultos, nos riríamos desse político? O quê, reduzir os meus rendimentos? Olha agora, querem lá ver que se eu quiser ter dez filhos, não os posso ter, não? Quem é esse borra-botas para me dizer que não posso ter o aquecimento central ligado 24 horas por dia no Inverno e o ar condicionado ligado todo o dia no Verão? E quem é este gajo para me dizer que não posso ir para o trabalho no meu carro? E, como, então agora não posso ter 2 apartamentos, 3 carros, 4 televisões, 2 computadores? E não posso comer o que me apetecer e, se quiser, pesar 150 quilos? E não posso viajar pelo mundo inteiro quando me apetecer, fazer turismo a torto e a direito? E não posso comprar vestuário novo todos os meses? Claro, e o que é que você faria a um político que lhe dissesse que teria de limitar os seus níveis de consumo? Mandava-o à fava, não era? Os políticos à sua Direita continuam a exigir mais crescimento económico, e à sua Esquerda, maior distribuição da riqueza. E o povo vai andando satisfeito porque, uns e outros, repetem aquilo que todos querem ouvir. O que nenhum deles tem coragem de dizer é algo que interfere com direitos, liberdades e garantias de todos nós. E eu seria o primeiro a ficar chocado, humanamente e civilizacionalmente chocado, se um político dissesse que a natalidade humana tivesse de ser draconianamente restringida. E você também, não é? Sim, é difícil chegar a estas conclusões. Não é fácil questionarmos os nossos princípios e os nossos valores. Tudo aquilo que nós consideramos básico, que jamais questionamos, porque faz parte dos valores que mais prezamos. No entanto, estaria esse político a dizer alguma mentira? Não, estaria a dizer verdades. Verdades duras, nuas e cruas que nenhum de nós quer ouvir porque continuamos bem instalados nos nossos sofás e queremos sempre mais. Porquê? Porque você tem necessidades que deseja satisfazer. Mas, veja se percebe: o problema não reside no facto de você desejar mais. O problema não reside no facto de todos desejarmos sempre mais. Humanamente é legítimo que cada um de nós queira sempre mais. Mas este planeta não tem mil milhões de seres humanos. Tem 6.5 vezes mais e estamos à beira de uma catástrofe inimaginável porque não paramos de satisfazer as nossas necessidades materiais. Pense bem: se a satisfação das necessidades das pessoas do mundo desenvolvido conduziu à desertificação e à desflorestação de imensas regiões do Planeta, se as consequências do Aquecimento Global estão aí, com toda a força, como resultado do impacto humano produzido essencialmente pelo mundo desenvolvido, se os recursos energéticos fósseis se estão a esgotar a um ritmo absurdo, cujas necessidades humanas não poderão ser preenchidas satisfatoriamente por outros recursos ou fontes energéticas, você acha mesmo que podemos continuar a esticar a corda? Mas você continua a reclamar por causa do aumento do preço do petróleo, não é? E, por acaso, tem noção que é devido ao aumento da procura (economias emergentes, com a China à cabeça), que a oferta não tem sido capaz de satisfazer, que é a principal causa do aumento do preço do petróleo? E tem noção que quanto maior for o desenvolvimento chinês, maiores serão as pressões sobre a sua carteira? Há, mas você continua a desejar o desenvolvimento de todo o mundo, certo? Não percebe mesmo o que se está a passar, pois não? E continua a reclamar porque o preço dos alimentos aumenta assustadoramente, não é? Mas não deixou de ir para o seu trabalho de carro, pois não? Nem de viajar a torto e a direito, pois não? Claro, é um direito seu. Mas esquece-se que é o seu (NOSSO) padrão de consumo que está a provocar um aumento dos preços alimentares porque os cereais agora também servem para produzir combustíveis. E, neste momento, as suas necessidades de locomoção automóvel estão a colidir estrepitosamente com as necessidades alimentares de centenas de milhões de seres humanos que só querem uns grãos de arroz ou de milho para satisfazer as suas necessidades básicas. E você continua mesmo convencido que, no meio desta loucura consumista, da qual você não quer abdicar, continua a haver margem para ter SOL NA EIRA E CHUVA NO NABAL, não é? E continua a interrogar-se porque razão as mudanças globais estão a ocorrer no sentido em que estão a ocorrer. E continua a apontar o dedo a estes ou àqueles, não é? No fundo, no fundo, você ainda não percebeu, pois não? Ou já começa a discernir a alhada em que nos encontramos metidos?
Diga-me, se você for à despensa, buscar um quilo de açúcar e constatar que ele desapareceu por causa dum formigueiro, você culpa uma formiga ou culpa o formigueiro inteiro? No entanto, cada formiga, individualmente considerada, é irrelevante para o consumo de açúcar, não é? Estamos, portanto, perante um problema de escala que irei procurar desenvolver nas próximas publicações, explicando detalhadamente porque razão não podemos continuar a aumentar os níveis de consumo à escala planetária.
Nota final: este foi o segundo texto (ainda de carácter algo introdutório) sobre uma série de questões relacionadas com as Mudanças Sociais que se avizinham (como eu espero estar errado!). Gostaria que não surgissem críticas básicas sustentando que eu estou contra o desenvolvimento do mundo subdesenvolvido ou contra as economias emergentes. Uma vez mais, não é nada disso que se trata. Se alguém raciocinar nesse patamar, não só não compreendeu nada, como nem sequer é capaz de ultrapassar os limites do formato ideológico em que se encontra fechado. Aos poucos espero clarificar detalhadamente as minhas preocupações com o futuro próximo da Humanidade, explicando porque razão considero que não há margem para uma humanidade simultaneamente mais rica, mais igualitária e, simultaneamente, demograficamente mais densa.

A Mudança Social que se aproxima

Quando pensamos nos nossos tempos, um dos aspectos que mais facilmente destacamos, como característica intrínseca e relevante, é a existência de uma intensa, profunda, extensa e abrangente mudança social. Nas mais variadas dimensões e esferas da nossa vida, da política à economia, da cultura à religião, da tecnologia ao lazer, das relações familiares e íntimas aos eventos sociais, da natureza, diversidade e mistura dos valores e dos princípios à natureza, diversidade e mistura das identidades pessoais, comunitárias, tribais, étnicas, nacionais ou civilizacionais, a mudança social está presente a um ritmo e com um nível de impacto jamais observados.
Apesar de todas estas mudanças, quando pensamos no nosso tempo, raros são os que pensam em mudanças radicais ao ponto de se observarem alterações estruturais, ao ponto do nosso mundo ruir por completo, surgindo das suas cinzas algo de muito diferente. Quantos serão aqueles que acreditam que o mundo, tal como o conhecemos, permanecerá “estruturalmente igual” para os nossos filhos e netos, como se apresenta aos nossos olhos? A maior parte daqueles que perdem algum do seu tempo a pensar o futuro tem tendência para ver um mundo semelhante ao nosso, eventualmente mais justo ou mais injusto, mais igualitário ou menos igualitário, mais desenvolvido e equilibrado ou menos desenvolvido e equilibrado, mas certamente mais dominado pela tecnologia.
No entanto, quantos pensarão que o mundo, nas próximas décadas, poderá sofrer mudanças radicais tão fortes, tão estruturais e tão profundas (ou mais) do que as ocorreram na transição do império romano ocidental para o período de dez séculos que ficou conhecido pela designação de Idade Média?
A questão não é irrelevante e só os distraídos poderão pensar que assim é. No fundo, a questão central é esta: qual a nossa capacidade de antecipar, prever, conhecer (ainda que no campo das probabilidades) o nosso futuro? Será que o homem moderno possui mecanismos, instrumentos de análise e conhecimentos que permitam uma percepção razoável da mudança social que se aproxima, principalmente quando essa mudança social se prefigura como sendo de natureza estrutural? Porque, entendamo-nos, apenas poderemos ter alguma capacidade de intervenção sobre a mudança se tivermos uma percepção mínima do que se aproxima. De outra forma, se continuarmos distraídos, seremos apanhados pela mudança dos tempos com toda a força, como brinquedos infantilmente manipuláveis.
Vejamos a questão através de um exemplo: Quantos cidadãos romanos, de meados do Séc. V, terão antecipado o fim do império romano ocidental? Será que, apesar de todas as mudanças, convulsões e problemas existentes no império romano do ocidente, algum cidadão foi capaz de prever a ruína total do império, com a transformação radical do seu mundo económico, político, cultural e social em algo de profundamente distinto, no espaço de poucos anos ou décadas? E será que, nos dias que correm, seríamos capazes de antecipar algo de semelhante se mudanças desse tipo fossem iminentes?
Vejamos um exemplo bem mais próximo de nós: No final dos anos 80, todo um bloco económico, civilizacional, cultural e político, o império Soviético, ruiu por completo em pouco mais de um ano. Será que alguém se recorda dos Economistas, Sociólogos, Historiadores, Politólogos, Filósofos, Intelectuais ou Pensadores que tenham antecipado a queda do império Soviético? Mesmo aqueles que, por motivações de discordância política, ideológica ou económica com esse Bloco, tivessem razões para desejar semelhante ruína, jamais apareceu alguém a antecipar a queda do bloco comunista a não ser quando ele já era evidente aos olhos de todo o mundo.
Por isso, uma vez mais, voltamos à questão central: apesar de todo o conhecimento acumulado e de todos os instrumentos analíticos que estão ao nosso dispor, ninguém foi capaz de antecipar uma mudança tão significativa, profunda, abrangente e com consequências tão dramáticas como aquelas a que assistimos no final de 1989 e princípios de 1990. E, para os mais distraídos, convém recordar que o Bloco Soviético era SÓ uma das grandes potências mundiais, com tudo o que isso significa no plano do poder geoestratégico, da influência das políticas nacionais e internacionais, da economia mundial, das escolhas e das alternativas políticas para o mundo. Como foi possível que um bloco todo-poderoso desaparecesse assim, numa decadência tão estrepitosa, sem que ninguém tivesse sido capaz de o antecipar, de o prever? Uma coisa é certa: ao contrário de nós, os nossos antepassados romanos não tinham ao seu dispor os instrumentos analíticos da ciência que hoje estão ao nosso dispor. E, no entanto…?!!!! O que terá falhado para que ninguém tivesse antecipado semelhantes mudanças?
Na minha perspectiva, é possível, com algum grau de razoabilidade, antecipar mudanças estruturais significativas, mas apenas e quando somos capazes de pensar criticamente a realidade social para além das limitações que nos são impostas pelo formato civilizacional e pelo caldo cultural em que crescemos e vivemos. Julgo que o mundo em que vivemos se aproxima de mudanças radicais muito semelhantes às que se viveram aquando da queda do império romano e ao surgimento da Idade Média, sendo que, essas mudanças irão ocorrer nas próximas décadas (provavelmente por volta de meados do Séc. XXI), mas apresentar-se-ão numa dimensão jamais vista pela humanidade, tendo em conta, por um lado, a natureza da sociedade global em que vivemos e, por outro, a dimensão absurda do volume demográfico existente actualmente no Planeta Terra.
Nunca fui catastrofista e muito menos adepto de teorias da conspiração. Prefiro analisar, pensar e discutir a realidade à luz de pressupostos científicos, baseando-me em factos, na clarividência dos sábios e na objectividade das técnicas e dos métodos. Por isso, peço desde já aos meus leitores que não confundam estas palavras com visões mirabolantes, crenças em conspirações tenebrosas ou mesmo um pessimismo meramente irrealista.
Também quero desde já deixar bem claro que não estou a defender a tese, e muito menos a fazer a apologia, de um regresso à Idade Média. Se pensarmos bem, a Idade Média representou uma autêntica implosão civilizacional: o mundo contraiu-se de tal forma que as esferas social, económica, política e cultural assumiram outras estruturas, outras regras, outras crenças, outras práticas. Um cidadão romano do início do Séc. V dificilmente se poderia integrar no mundo no início do Séc. VI, tão profundas tinham sido as mudanças. As instituições políticas, as leis, o mercado, a ordem pública, a estrutura social, as práticas culturais, os costumes, as tradições, tudo isto tinha sofrido alterações significativas ou estava a caminho de as sofrer.
Em certa medida podemos dizer que o Império Romano Ocidental se encontrava, à sua escala, à sua dimensão e no seu contexto, “globalizado”. E, por isso, também podemos dizer em certa medida, que a Idade Média significou uma implosão dessa “globalização”, implosão essa que se traduziu numa redução significativa dos conhecimentos e das técnicas, principalmente a nível cultural, nas artes, na Engenharia Civil, na Arquitectura, no Direito, na Filosofia (e como tal na proto-ciência da época) e na Literatura, mas também uma implosão no mundo social, que passou a ser territorial, económica e socialmente mais fechado, limitado, inseguro, pobre e inculto.
Porque razão não somos capazes de antecipar mudanças tão graves quando elas se aproximam? Seremos capazes de as evitar ou a marcha da História é imparável? Julgo que um dos aspectos que mais dificultam a nossa capacidade de antecipar o futuro (dentro de alguns limites razoáveis), decorre das limitações civilizacionais em que fomos socializados e em que vivemos. Os romanos não foram capazes de antecipar mudanças tão radicais, assim como os poderes do Kremlin não foram capazes de evitar a queda do bloco Soviético, porque todos estamos imersos num caldo cultural, composto de formas de pensar, sentir e perceber o mundo que integram um FORMATO que nos impede de questionar toda uma série de valores, princípios e convenções. Só podemos ver mais além se formos capazes de discutir os problemas do nosso tempo fora dos limites axiológicos, ideológicos e culturais que, como se uns óculos coloridos se tratassem, nos impedem de ver a realidade. De certeza que o leitor conhece respostas mecânicas (ideologicamente formatadas, não importa agora o género, tipo ou qualidade dessas ideologias) a toda uma série de questões do nosso tempo, para as quais temos sempre respostas rápidas: a culpa é sempre destes ou daqueles, é do sistema ou da globalização, é desta ou daquela religião... De certa forma, este tipo de atitude é mais confortável, é mais simples, é mais cómoda: não temos de pensar muito, não temos de questionar as verdades feitas do nosso tempo, não temos de pôr em causa as nossas crenças e os nossos valores (coisa que dá trabalho e exige esforço, liberdade de pensamento e, acima de tudo, espírito crítico), não precisamos de discutir as opções dos nossos líderes e limitamo-nos a continuar à espera que eles actuem como os “pais-que-providenciam-o-pão-nosso-de-cada-dia”. Se, desde que nascemos, nos puserem à frente uns óculos coloridos, dos quais não nos apercebemos, que nos fazem ver tudo a azul, verde ou vermelho, não questionamos que a realidade seja, aos nossos olhos, azul, verde ou vermelha. De certa forma, o poder do formato cultural e civilizacional tem o mesmo efeito. Esse formato era tão forte para os romanos quanto o é para nós, apesar do formato actual ser profundamente diferente do deles. Simplesmente, se não conseguirmos olhar a realidade para além das limitações que esse formato nos impõe, só nos iremos aperceber da mudança tarde demais. Os valores, os princípios, a ética, no fundo tudo aquilo que jamais temos a coragem de questionar, de tal forma as convenções se cristalizam, são, em grande parte, aquilo que nos impede de antecipar mudanças estruturais profundas como estas que estou aqui a referir. No fundo, há que dizê-lo: a maior parte dos habitantes deste planeta olham, raciocinam, percepcionam e dão sentido ao mundo no quadro de uma nação, de uma religião ou de uma civilização. São raros aqueles que percebem o mundo fora destes limites culturais. Por isso, não é estranho ouvirmos alguém apontar o dedo, de forma ignorante, e dizer que a culpa é dos EUA ou da China, ou do Catolicismo ou do Islão, ou dos ricos ou dos pobres. Tolos, uns e outros, que não conseguem ver para além dos limites do formato civilizacional em que foram fechados. Enquanto não se libertarem desses casulos ideológicos, jamais poderão compreender o que se está a passar no mundo. E, enquanto se entretêm na tentativa de encontrar respostas (simples), normalmente com bodes expiatórios pré-definidos e ajustados à satisfação das suas visões particulares, num evidente ciclo tautológico, em que a lógica da ideologia justifica o dedo apontado e o dedo apontado justifica a lógica ideológica, são incapazes de perceber de facto porque razão o mundo está a mudar tão intensa, profunda e radicalmente. Conseguem, assim, encontrar respostas particulares e fáceis para questões que exigem um patamar analítico muito mais abrangente, complexo, integrado e objectivo.
E enquanto barafustam, porque a realidade lhes está a escapar das mãos, continuam a não perceber nada do que efectivamente se está a passar à nossa volta, à escala mundial. Continuam a esbracejar e a apontar o dedo em certas direcções, sem perceberem que estão a pedir “SOL NA EIRA E CHUVA NO NABAL” (há décadas) e que há um evidente confronto de interesses (económicos) e de valores (políticos e ideológicos) que ninguém quer discutir, debater ou pensar, principalmente porque esse confronto de interesses e de valores nos colocam perante consequências horríveis, de solução aparentemente impossível, com dilemas civilizacionais profundos, que nos atingem directamente (A TODOS NÓS) nos planos da ética, dos direitos, dos deveres, dos patamares de liberdade e de igualdade a que estamos habituados e a que aspiramos.
Nas próximas décadas o mundo irá mudar muito e não creio que as probabilidades apontem no sentido das melhorias. Muito pelo contrário. Todos nós iremos assistir a um mundo em convulsões, com elevadas probabilidades de se cruzarem fenómenos globais de insegurança, criminalidade, guerra, barbárie, genocídio, fome, ódio, racismo, xenofobia, medo, incivilidade... E tudo a uma escala nunca antes visionada. Por isso, se anda preocupado com o que se está a passar à sua volta (desemprego, precariedade laboral, criminalidade, corrupção, iliteracia, massificação da loucura, da ignorância e da boçalidade, desmantelamento do Estado Providência, baixa da natalidade, etc.), não se preocupe porque o que aí vem fará de todas estas preocupações uma autêntica brincadeira de crianças.